Nossa indicação de leitura é um texto de Mário Sérgio Cortella, publicado na Folha de São Paulo, em 28/09/2000.
Apesar de 14 anos terem se passado, o texto é tão atual, que parece ter sido escrito ontem... boa leitura!
"O sempre surpreendente Guimarães Rosa
dizia: "O animal satisfeito dorme". Por trás dessa aparente obviedade
está um dos mais profundos alertas contra o risco de cairmos na monotonia
existencial, na redundância afetiva e na indigência intelectual. O que o
escritor tão bem percebeu é que a condição humana perde substância e energia
vital toda vez que se sente plenamente confortável com a maneira como as coisas
já estão, rendendo-se à sedução do repouso e imobilizando-se na acomodação.
A advertência é preciosa: não esquecer
que a satisfação conclui, encerra, termina; a satisfação não deixa margem para
a continuidade, para o prosseguimento, para a persistência, para o
desdobramento. A satisfação acalma, limita, amortece.
Por isso, quando alguém diz
"Fiquei muito satisfeito com você" ou "Estou muito satisfeita
com seu trabalho", é assustador. O que se quer dizer com isso? Que nada
mais de mim se deseja? Que o ponto atual é meu limite e, portanto, minha
possibilidade? Que de mim nada mais além se pode esperar? Que está bom como
está? Assim seria apavorante; passaria a ideia de que desse jeito já basta.
Ora, o agradável é alguém dizer "seu trabalho (ou carinho, ou comida, ou
aula, ou texto, ou música etc) é bom, fiquei muito insatisfeito e, portanto,
quero mais, quero continuar, quero conhecer outras coisas".
Um bom filme não é exatamente aquele
que, quando termina, nos deixa insatisfeitos, parados, olhando, quietos, para a
tela, enquanto passam os letreiros, desejando que não cesse? Um bom livro não é
aquele que, quando encerramos a leitura, permanece um pouco apoiado no colo e
nos deixa absortos e distantes, pensando que não poderia terminar? Uma boa
festa, um bom jogo, um bom passeio, uma boa cerimônia não é aquela que queremos
que se prolongue?
Com a vida de cada um e de cada uma
também tem de ser assim; afinal de contas, não nascemos prontos e acabados.
Ainda bem, pois estar satisfeito consigo mesmo é considerar-se terminado e
constrangido ao possível da condição do momento.
Quando crianças (só as crianças?),
muitas vezes, diante da tensão provocada por algum desafio que exigia esforço
(estudar, treinar, emagrecer etc), ficávamos preocupados e irritados, sonhando
e pensando: Por que a gente já não nasce pronto, sabendo todas as coisas? Bela
e ingênua perspectiva. É fundamental não nascermos sabendo nem prontos; o ser
que nasce sabendo não terá novidades, só reiterações. Somos seres de
insatisfação e precisamos ter nisso alguma dose de ambição; todavia, ambição é
diferente de ganância, dado que o ambicioso quer mais e melhor, enquanto que o
ganancioso quer só para si próprio.
Nascer sabendo é uma limitação porque
obriga a apenas repetir e, nunca, a criar, inovar, refazer, modificar. Quanto
mais se nasce pronto, mais se é refém do que já se sabe e, portanto, do
passado; aprender sempre é o que mais impede que nos tornemos prisioneiros de
situações que, por serem inéditas, não saberíamos enfrentar.
Diante dessa realidade, é absurdo
acreditar na ideia de que uma pessoa, quanto mais vive, mais velha fica; para
que alguém quanto mais vivesse, mais velho ficasse, teria de ter nascido pronto
e ir se gastando...
Isso não ocorre com gente, mas com
fogão, sapato, geladeira. Gente não nasce pronta e vai se gastando; gente nasce
não-pronta e vai se fazendo. Eu, no ano 2000, sou a minha mais nova edição
(revista e, às vezes, um pouco ampliada); o mais velho de mim (se é o tempo a
medida) está no meu passado, não no presente.
Demora um pouco para entender tudo
isso; aliás, como falou o mesmo Guimarães, "não convém fazer escândalo de
começo; só aos poucos é que o escuro é claro"..."
MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da
PUC-SP e autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos
e Políticos" (ed. Cortêz/ IPF), entre outros, escreve aqui uma vez por mês
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq2809200027.htm
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